terça-feira, setembro 21, 2004

Toda a dor do mundo

“A gente começa matando um rato, depois mata um ladrão, depois um judeu, depois uma criança da vizinhança com a cabeça grande, depois uma criança da nossa família com a cabeça grande”. Rubem Fonseca

No trânsito, não tinha pressa. Também não queria ter. Mas acelerava cada vez mais. Gostava de entrar no túnel, centro da cidade, luzes alaranjadas, mercúrio. A mil. Um homem urinava no asfalto, na faixa que dividia os dois sentidos da via. Mãos para cima, cabelos molhados, girava o corpo para o alto, como se, ao invés do teto do túnel, lá estivesse o céu estrelado, limpo. O carro encostado na pista. “O mundo é aquilo que eu vejo, sinto em mim, definitivamente”. Uma cena daquelas fazia pensar. Que mundo era aquele, naquela hora? Odiava esse tipo de interferência, desnorteante, chateada e triste, apesar de conviver com os outdoors, pedintes e o lixo que se amontoava de vez em quando na rua, mas não aquilo.

Não queria ver nenhum desconhecido nu, não queria ver ninguém feliz daquele jeito, as calças no joelho, as mãos para cima, dando graças a Deus. Devia estar muito bêbado, plena segunda-feira, madrugada. Era louco, mas não tinha o direito de entrar assim no mundo dela. Ele e ela, desconhecidos. Ela, muito brava, ele nem via. “Puta que pariu!”. Uma mosca bate no pára-brisa do carro e fica lá, no silêncio. O túnel passou e ficou lá. “Puta que pariu!”. A rua subia. Quando as pistas se estreitavam, o carro engatado não tinha forças e ela pensava no que aconteceria se o volante se desviasse para a direita. Com certeza o mundo seria outro.

Todo dia passava por ali, o centro da cidade, quase todo dia, mesma hora. E quando havia carros do outro lado, todos eles corriam, desciam para o túnel, felizes da vida, mas muito rápido. Vindo em sua direção como água. Que inferno.

Hoje eu queria saber menos do que eu sei. Queria ter ouvido menos do que ouvi, ter visto menos do que eu já vi. Ser mais distraída. Uma mania de querer entrar em detalhes desnecessários. Queria ter batido menos a cabeça por esses dias. Bebido menos, talvez. Conversado menos, saído menos de casa. Não tem nada melhor do que a rotina pesando nos ombros, do que o silêncio velado, lindo. A passividade é toda minha, disponha. E é boa mesmo. Uma conquista que já não está mais aqui. Queria sentir menos que você chegou a escutar tudo o que eu disse. O que eu tinha para dizer, sem negar as minhas percepções, por favor. Por mais absurdas que fossem as distorções. É impossível me sentir melhor, sentindo tantas coisas. É por isso que eu queria muito saber menos do que eu sei. E se eu arrumar essa bagunça, é bem capaz que volte a ouvir sua respiração na minha perna, de dormir. Eu quero mais é que o silêncio volte. Podemos ficar sentados, vendo filmes de terror à noite, como antes. E você volta a ter paciência. E eu volto a não precisar dos outros, a odiar todas as pessoas que eu não conheço. E você volta a rir disso.

1 Comments:

At 12:06 AM, Anonymous Anônimo said...

Humm... Era eu naquele dia, naquele túnel. Sorry, mas eu estava muito apertado... "puta que pariu"!

 

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