Isso tudo é sobre o azul
(Come sit next to me / Pour yourself some tea)
Uma peça de Debussy, em recital
E se eu raspasse a cabeça, pintasse os olhos e saísse rindo por aí
Ameixa, café ou chocolate, de unhas
Os seus problemas acabariam, os seus, os nossos, os deles
Ver o sol nascer na estrada de ir para o sudeste ou sudoeste das gráficas
Eu não quero ser entendida, compreendida, comunicativa. Alegre, espontânea, deprimida, histérica
Nem lembrar de nada, nem esquecer fatos selecionados
Nem andar de salto, nem andar sem sapato
A lógica dos deuses nervosos
Não sejamos óbvios agora
Eles não estão bravos
É possível ter controle apenas após perder a consciência nem que seja por alguns instantes
Discussões idiotas acerca da melhor forma de pensar os pares, eu cansei de tentar formar conjuntos
I´ve got a box full of your toys
They're fresh out of batteries
But they're still making noise
((making noise))
Acqua Lia
Um dia acordou, três da manhã. Sonhou um sonho ruim. Era um filme inteiro, como de vez em quando acontecia. Sonhava com legendas. Filmes inteiros. Mas agora tinha sido ruim. Decidiu então o que não queria ser. E não seria mesmo. Foi nesse dia que acordou e disse a si mesma que nada ia ser assim. Nada ia sair como previsto. E era só ficar quieta, polegar na boca, mordendo, que o sono voltaria.
Uma mulher de 50 anos, com vinho na cabeça, dizia que queria comer o chefe. Com legendas. Mulher desesperada por mais sexo e menos vinho solitário perante multidão de dez ou quinze colegas de trabalho. E os mais novos sempre mais perplexos. O seu chefe era jovem e, sabe-se lá por que, não estava por perto. Ela grita para o som abafado de vozes que teimam em falar mais baixo que ela, que o pensamento dela. Sente-se poderosa e sexy. Algumas pessoas olham e sorriem. Ela está no meio da sala.
Mas nada seria assim. Ela não seria assim.
Ano novo e agora é champagne.
Pessoas sensatas conversam sobre a decoração da casa. De onde são essas velas cheirosas? A disposição dos móveis para a festa. Sonho, sono. Orgulho das mãos jovens que tinha. E também a longa linha da vida, que dizia que ela teria dois filhos, que morreria bem velhinha.
Então ela passaria a acreditar em duendes e anjos de uma hora para outra?
Vizinhos reclamam em pleno 31 de dezembro (ou 1º de janeiro). Menos som, menos música, por favor, obrigado. As azeitonas começam a fazer efeito e a garganta queima. Estômago quente borbulhante. Uma droga depois de certa idade.
Um celular toca Pretty Woman. A mulher de 50 e saltos cambaleantes corre e atravessa a sala.
Nunca usaria batom rosa, nem que fosse a última moda.
Atende. Feliz ano novo para a tia e primos.
Não fazia o tipo que alimentava falsas esperanças masculinas em troca de uma boa massagem de ego. Por mais que o coração disparasse vez por outra. Os atos têm conseqüências, quase sempre. Era assim que poderia se tornar aquilo. Mulher de 50 anos comemora passagem de ano com semi-conhecidos.
E assim, sem mais nem menos, com o polegar na boca, a mulher dormiu.
Sim, era verdade que o polegar na boca traria o sono profundo, mas nunca sentiria azia com vinho, azeitonas e champagne.
Cabeça no sofá desconhecido. Uma namoradeira, divã de dois lugares, como se chamam esses móveis. O sapato esquerdo já precariamente dependurado, fora do calcanhar. A cabeça roda. E a mulher de pés-de-galinha avançados percorre a sala de estar com olhos baixos. Velas exalam alecrim e canela ao mesmo tempo. Alguns gostos, texturas e cheiros não deveriam se misturar.
Dormir. Esquecer, sonhar de novo. Lembrar-se. O problema é adormecer com a televisão ligada. Depois de uma certa hora, os canais são invadidos por programas evangélicos de exorcismo, reconciliação de famílias, pessoas que sofrem histericamente. Horas de auto-ajuda desperdiçadas em sonhos.
((Quiz))
Se não sinto necessidade de nada agora, a culpa é unicamente minha. Mas se sinto a incrível necessidade de ter alguma necessidade, a culpa é sua. De qualquer um, menos minha. Eu queria me sentir bem por estar me sentindo mal. Ou não me sentir mal por estar me sentindo bem. Como se ninguém fosse entender. Queria saber o motivo de eu achar que as pessoas estão sempre mentindo um pouco em tudo o que dizem. Mas isso não chega a ser uma necessidade.
Sobre o contentamento
Ou: Sou um porco insatisfeito
"É melhor ser uma criatura humana insatisfeita do que um porco satisfeito"
E se eu não posso ser nem uma coisa nem a outra, então é melhor parar de respirar.
Concentração. Um grito de foda-se.
FODA-SE!
Egotrip
Alteração de humor imediata por causa de luzes que ferem os olhos e o resto do corpo. Submissão, rejeição, a subalterna. Eu nem me lembro bem o que eu tanto queria te falar, quando disse que você devia morrer. E ainda levo trabalho para casa, na busca incessante por uma anestesia qualquer.
Doeu muito, mas não arrancou pedaço. Prometo não sentir mais nada nos próximos dez anos. Melhor, eu juro. Tudo isso, na verdade, é um grande jogo de concentração, misturado com uma enorme dose de condicionamento. As pessoas se acostumam a reagir de determinada forma e simplesmente fazem de tudo para se sentirem correspondidas em cada merda de movimento condicionado. Cansei desse treinamento idiota.
Sede, bebe água, fome, ataca qualquer coisa na geladeira. Beijo. Toma aqui.
E eu preciso dizer que todas as pessoas do mundo podem abusar umas das outras, inclusive eu. Sou capaz também. Ruim.
Mudarei hábitos, não antes de comprar os presentes de Natal.
Um dia foi assim
Ela voltava do inglês, sempre de ônibus, livros na mão e walkman no ouvido, pelos idos de 1990. Gostava de usar óculos escuros, achava aquilo diferente. Na escola, não ia nada bem. Era impossível tentar afinar o ouvido com as vozes das incríveis professoras mais feias do mundo.
E tinha o Daniel. Bem magro, cheio de espinhas. Prestava atenção em tudo que ela dizia. Gostavam de Nirvana, Smiths e tinham uma queda pelo Guns´n´Roses. Legião Urbana, Sex Pistols, conversavam sobre isso. E sobre ela. Tinham Beatles e Ramones também. O programa do Chaves, Beavis and Butthead. Planejavam pintar o cabelo de vermelho com papel crepom no último semestre.
Um dia, ela chegou e disse do nada que queria passar o dia dentro de um aquário. No meio da aula de matemática. Jurava que seria legal passar o dia no aquário que tinha em casa. Só pra ver a cor da água por dentro. Ele riu e disse que não queria nada. No outro dia, levou para ela uma fita K7. Obrigada. Quê isso, não foi nada. Acho que vou gostar. Aposto que vai.
Na quarta-feira, encontraram-se no portão da escola. Ela agradeceu de novo o presente. Melhor ser educada. Red Hot Chilli Peppers é legal. Gostei mesmo. No recreio, ela disse que queria jogar areia na Adriana, a menina mais bonita da turma. Pra ver ela chorar e pronto. Perguntou se areia era melhor, porque ardia mais no olho, ou se terra era bom para sujar o uniforme. Ele riu sem responder. Eu nem quero nada.
À tarde, voltou da aula de inglês pensando na quantidade de espinhas e cravos na cara do Daniel, ouvindo a fita. Quantos seriam, ao todo, contando as do pescoço? Da janela do ônibus, ria do jeito das pessoas dirigindo. Achava ridículo que todas ficassem sentadas dentro de caixinhas e ainda por cima se achando o máximo. Um homem coçava o nariz no sinal fechado, em plena avenida. Não pensava que todos estavam vendo.
No final do segundo tempo de sexta-feira, entre a aula de Ciências e a de Português, ela disse que queria ficar mais velha, tirar carteira de motorista, dirigir bem rápido e enfiar a cara no poste. É só pra ver os vidros do pára-brisa despedaçando bem perto da cara. Ele ficou sério. Eu queria te dar um beijo.