quinta-feira, dezembro 23, 2004

Acqua Lia

Um dia acordou, três da manhã. Sonhou um sonho ruim. Era um filme inteiro, como de vez em quando acontecia. Sonhava com legendas. Filmes inteiros. Mas agora tinha sido ruim. Decidiu então o que não queria ser. E não seria mesmo. Foi nesse dia que acordou e disse a si mesma que nada ia ser assim. Nada ia sair como previsto. E era só ficar quieta, polegar na boca, mordendo, que o sono voltaria.

Uma mulher de 50 anos, com vinho na cabeça, dizia que queria comer o chefe. Com legendas. Mulher desesperada por mais sexo e menos vinho solitário perante multidão de dez ou quinze colegas de trabalho. E os mais novos sempre mais perplexos. O seu chefe era jovem e, sabe-se lá por que, não estava por perto. Ela grita para o som abafado de vozes que teimam em falar mais baixo que ela, que o pensamento dela. Sente-se poderosa e sexy. Algumas pessoas olham e sorriem. Ela está no meio da sala.

Mas nada seria assim. Ela não seria assim.

Ano novo e agora é champagne.
Pessoas sensatas conversam sobre a decoração da casa. De onde são essas velas cheirosas? A disposição dos móveis para a festa. Sonho, sono. Orgulho das mãos jovens que tinha. E também a longa linha da vida, que dizia que ela teria dois filhos, que morreria bem velhinha.

Então ela passaria a acreditar em duendes e anjos de uma hora para outra?

Vizinhos reclamam em pleno 31 de dezembro (ou 1º de janeiro). Menos som, menos música, por favor, obrigado. As azeitonas começam a fazer efeito e a garganta queima. Estômago quente borbulhante. Uma droga depois de certa idade.
Um celular toca Pretty Woman. A mulher de 50 e saltos cambaleantes corre e atravessa a sala.

Nunca usaria batom rosa, nem que fosse a última moda.

Atende. Feliz ano novo para a tia e primos.

Não fazia o tipo que alimentava falsas esperanças masculinas em troca de uma boa massagem de ego. Por mais que o coração disparasse vez por outra. Os atos têm conseqüências, quase sempre. Era assim que poderia se tornar aquilo. Mulher de 50 anos comemora passagem de ano com semi-conhecidos.

E assim, sem mais nem menos, com o polegar na boca, a mulher dormiu.

Sim, era verdade que o polegar na boca traria o sono profundo, mas nunca sentiria azia com vinho, azeitonas e champagne.

Cabeça no sofá desconhecido. Uma namoradeira, divã de dois lugares, como se chamam esses móveis. O sapato esquerdo já precariamente dependurado, fora do calcanhar. A cabeça roda. E a mulher de pés-de-galinha avançados percorre a sala de estar com olhos baixos. Velas exalam alecrim e canela ao mesmo tempo. Alguns gostos, texturas e cheiros não deveriam se misturar.

Dormir. Esquecer, sonhar de novo. Lembrar-se. O problema é adormecer com a televisão ligada. Depois de uma certa hora, os canais são invadidos por programas evangélicos de exorcismo, reconciliação de famílias, pessoas que sofrem histericamente. Horas de auto-ajuda desperdiçadas em sonhos.